A insanidade humana -
Escrito por REGINALDO DOS SANTOS AURESLINO em 08/10/2016
Era uma vez… uma ilhota não tão paradisíaca no Pacífico sul chamada Nauru. 21 km quadrados. No passado, seus habitantes (como bons polinésios) eram grandes navegadores: cruzavam o oceano à bordo de seus barquinhos frágeis. Muitos morriam na jornada, de fome, inanição. Os poucos sobreviventes, ao voltar para a ilha, eram tratados como reis: heróis na comunidade, ganhavam todo tipo de regalia. Engordavam com toda a fartura a eles oferecida, e ser muito gordo era o esteticamente belo. Até a próxima jornada ao mar, quando retornavam ao sofrimento e inanição – tudo em nome da descoberta de novos vizinhos naquele oceano infinito. Aos que viviam em terra, sobrava pesca e agricultura de subsistência.
E assim viveram por muitos séculos. Até que os europeus encontraram Nauru em 1830, e logo os alemães tomaram conta, sendo seguidos pelos australianos. No início do século XX, descobriu-se que a ilhota possuía uma reserva inacreditável de fosfato de alta qualidade, usado como fertilizante na então emergente agricultura industrial. As Guerras Mundiais vieram, exploração do Pacífico, até a independência do país em 68.
Aí é que começa o caráter experimental, laboratorial, do lugar. A exploração do fosfato, antes sendo feita pelos britânicos, foi logo repassada para os nauruanos, que começaram a ganhar muito dinheiro com a venda do mineral pelo mundo afora. Sim, a ilha era toda uma grande reserva de fosfato, minas se proliferaram no local, e logo os nauruanos passaram a ser um povo muito rico. Tão ricos que chegaram a constar na lista de maior renda per capita do planeta por certo período na década de 70! O óbvio: quem tem muito dinheiro, investe e não trabalha mais, certo? Pois foi exatamente isso que eles fizeram.
Como cada nauruano era um rico de verdade – o país passou a ser administrado como uma grande empresa -, com acesso a fartura que só o american way of life consegue difundir tão fortemente, os nauruanos passaram a viver como marajás: não trabalhavam (contratavam trabalhadores de outras ilhas para a exploração de fosfato), compraram imóveis pelo mundo e viviam do aluguel desses lugares (um prédio inteiro no centro de Honolulu, por exemplo pertencia a Nauru, que alugava seus escritórios), comiam do bom e do melhor junk food pronto (claro, ninguém quer ter o trabalho nem de cozinhar, né?), e não mais se exercitavam, como na época em que navegavam, remavam pelo Pacífico. De tal forma que esse ciclo gerou o que na biomedicina virou uma história clássica: Nauru tem uma epidemia de obesidade e diabetes tipo 2.
Epidemias geralmente são causadas por agentes infecciosos: vírus, bactérias, protozoários e afins. Diabetes tipo 2 não é doença infecciosa. É uma patologia que reflete o estilo de vida associada à presença de genes suscetíveis – e isso tornou Nauru um laboratório em tempo real para vários estudos genéticos pela característica única da epidemia. Até hoje, os maiores índices de diabetes tipo 2 estão lá: cerca de dois terços da população economicamente ativa! Acredita-se que o estilo de vida dos nauruanos do passado selecionaram genes ao longo do tempo que permitissem a manutenção máxima de energia em seus corpos: claro, eles viajavam muito e passavam longos períodos com fome. Quando a comida passou a ser farta e de alto valor calórico, esses genes não entenderam a mensagem: continuaram guardando, estocando toda a energia no corpo dos nauruanos.
Mas fosfato é recurso natural não-renovável. E um dia, o fosfato de Nauru acabou. (Esse dia em tese será em 2006, mas já há pouquíssima exploração: não sobrou nada). A população, obesa e diabética, com uma expectativa de vida das menores do mundo, deparou-se então com um país cujo solo não se podia plantar mais – estava destruído pelas minas -, não produzia mais nada, dependia de serviços e alimentos estrangeiros, e com um dos maiores crimes ecológicos de que a história tem notícia. Ah! E sem perspectivas de turismo, pois de acordo com a opinião geral, é um lugar feio, sem nenhum atrativo que justifique a um turista médio se deslocar tão longe para passeio – lembre-se que 90% do solo foi fuçado e remexido, virou terreno morto. A destruição de uma ilha pela voracidade da exploração humana.
Na década de 90, após vender várias das propriedades do país no exterior na tentativa de manter o estilo de vida da população, ainda tentou um último suspiro econômico que não quebrasse todo esse ciclo vicioso: transformou-se num paraíso fiscal. Entretanto, logo grande parte do dinheiro da máfia russa passou a circular por lá, e Nauru, dependente de comida estrangeira, foi pressionada a acabar com a lavagem de dinheiro.
Hoje Nauru, um mercado consumidor sem capital, endividada pelos vários empréstimos, está em falência total: declarou estado de emergência em 2004, e dependerá agora da benevolência da ONU ou sabe-se lá de quem para sobreviver decentemente. Isso se o nível dos oceanos não subir antes, é claro – Nauru será um dos primeiros países a desaparecer da Terra, nesse caso.
Os nauruanos não viveram felizes para sempre, como o conto de fadas deles imaginava.
Tudo de bom sempre.
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Viajando na maionese…
– Será que se a gente trocar o fosfato pelo petróleo, podemos utopizar que vivemos num macro-Nauru? Em que estágio estaremos, nesse caso?
– Veja um mapa de Nauru aqui. – Se você procurar pela culinária nauruana… sente e chore. A comida típica deles é MacDonald’s.
– Poucos diabetólogos estudam profundamente a população nauruana, na tentativa de encontrar genes que estejam ligados à predisposição de diabetes tipo 2. Algumas dessas pesquisas já renderam bons frutos, auxiliando indiretamente o desenvolvimento de melhores drogas ou tratamentos. Ou pelo menos aumentando o nosso conhecimento sobre a patologia que rouba 100 bilhões de dólares anuais do orçamento nos EUA.
Fonte: https://www.luciamalla.com/blog/2005/04/o-laboratorio-nauru.html
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